quarta-feira, 2 de setembro de 2015

O Vestido

O Vestido
Janice foi convidada para ser madrinha de casamento de sua afilhada Sandra. Durval, o marido, havia feito um bom contrato de prestação de serviço para um político da cidade e com isso ela pode se empetecar a vontade para o casamento.
Comprou um vestido longo azul claro. Simples mas muito elegante. Janice tinha bom gosto pelas coisas. Foi educada em colégio interno de freiras. Havia feito faculdade de letras numa universidade católica. As próprias freiras sustentaram sua graduação, foi uma aluna exemplar no internato. Formou-se em latim antigo, infelizmente ninguém a avisou que esta língua era morta.
Conheceu Durval no final da faculdade. Foi amor á primeira vista. Ele estudava engenharia elétrica. Formavam o casal perfeito a exatas e a humanas. Janice foi convidada a continuar na universidade, mas abdicou em favor de seus filhos. Foram quatro no total, todos formados.
No dia do casamento de Sandra ficou cinco horas no cabeleireiro foi serviço completo, pés, mãos, cabelos, limpeza de pele, massagens. Tudo isso valeu a pena. Quando Durval a viu com seu vestido recém comprado, saltou os olhos como um lobo que vislumbra uma bela cabrita. Ela com um sorriso maroto tinha entendido tudo. Haveria duas festas hoje.
Chegaram à igreja com o novo carro importado de Durval em grande estilo. Trataram de tomar seus devidos lugares de padrinhos ao lado esquerdo da noiva. A igreja estava cheia. Iria ser um casamento epopeico. Meses depois o casamento ainda seria tema de assunto em cabeleireiros e rodas de madames. O ambiente estava preparado para receber a noiva. Dez minutos depois soam as trombetas, a marcha nupcial começa a tocar, pétalas de rosas caem do balcão. Mulheres em prantos ao ver a beleza da noiva. Seu vestido era de um branco virginal, com uma longa cauda e um penteado alto aparentando uma maior estatura.
O padre deu início á cerimônia.
Janice estranhou que as mulheres da plateia a olhavam e algumas davam risadinhas irônicas. Sua amiga Elenice apontou discretamente o outro lado, os padrinhos do noivo.
Tragédia! Desastre!
A madrinha, prima do noivo, estava com um vestido idêntico ao dela!
Janice quase desfaleceu. Como alguém pode ousar vestir a mesma roupa que a dela?
Estava vermelha era evidente sua consternação. Durval também percebeu a coincidência e foi solidário a sua mulher apesar da voluptuosidade da prima do noivo. Era notório que o vestido caia muito melhor na prima do noivo do que em Janice. O padre fez o favor de estender a missa ao máximo, era amigo da família.
O sermão dizia a respeito das boas amizades do quão era bom se sentir perto das pessoas que compreendem seus medos e alegrias.
Janice mal ouviu o sim, qualquer esquina ou buraco serviria para se esconder deste escândalo.
Ela seria motivo de chacota de toda a alta sociedade. Afinal batalhou tanto para conseguir chegar a este status e por causa de uma sirigaita foi destronada de um minuto para outro. Foram jantares, festas, aparições públicas. Tudo em vão. Amanhã retornaria ao ostracismo social.
Os noivos estavam casados. Janice tratou de sair da vista de todos, mas aquela fila de comprimentos era um tumulto, não tinha como fugir. Tudo isto a fez ponderar qual seria a gafe maior sair à francesa de um casamento em que se é personagem principal ou encarar as terríveis coincidências.
“Mas que diabos!” – Ela pensava.
“Porque esta lambisgóia foi escolher o mesmo vestido que o meu?”
Chegou a hora dos comprimentos Janice mal sorria, o casamento de sua sobrinha preferida foi um desastre. Cumprimentou Sandra com dois beijos e um abraço foi quando viu a madrinha do noivo logo atrás. Janice baixou a cabeça, foi saindo como um cachorro com o rabo entre as pernas mas a prima lhe interrompeu o caminho:
“Meu Deus! Mas você esta com o mesmo vestido que eu! Você realmente tem um ótimo gosto!” – Falou em alto e bom som para todos ali na frente da igreja ouvirem.
“Mulher desgraçada, piranha, vagabunda!” – Seus pensamentos quase saíram pela boca, seus olhos ferviam. Ameaçou um coice na canela dela. Durval que a conhecia muito bem agarrou seu braço evitando um mal maior e a compostura pairou sobre suas cabeças novamente.
Foram apresentadas as respectivas madrinhas, a prima se chamava Celina uma mulher alta de cabelos pretos e lisos, pequenos e incisivos olhos castanhos. Sua boca só lábios havia, suas pernas não acabavam mais. Extremamente simpática, mais do que o necessário, pensou Janice.
Os noivos iriam receber os comprimentos em um famoso buffet da cidade.
Celina estava sem condução para a festa. Pediu carona a alguém e logo vários marmanjos se dispuseram a levá-la inclusive o Durval.
Celina ficou encantada com o casal e aceitou.
“Nossa! Mas vocês dois formam um casal maravilhoso, acho mística esta linda coincidência dos nossos vestidos. A senhora não acha?”
Os olhos de Janice se encheram de lindas lágrimas de raiva, rezou para que seu marido fosse um psicopata e a matasse. Jogaria seu corpo no rio e tudo estaria bem o tão afamado casamento estaria salvo e não seria alvo de chacotas das fofoqueiras de plantão.
Parecia que aquele pesadelo não teria fim. No salão foram fotografadas juntas, filmadas juntas, até entrevistadas. Celina insistiu em sentar-se à mesa junto com tão belo casal, marmanjos a cortejavam a toda hora. Durante a valsa Janice desabafou com Durval:
“Quero sair desta festa não quero ficar nem mais um minuto. Estou traumatizada com esta situação e você não faz absolutamente nada para me ajudar! Você podia muito bem dar um tiro nesta vagabunda!”
Janice estava visivelmente transtornada.
“Venha cá meu amor vou pegar um uísque para você relaxar. Uma bebida forte vai te ajudar”.
Os dois foram ao garçom mais próximo. Ela nem fez cara feia ao virar o copo cheio. Voltaram para a mesa.
Celina estava conversando animadamente com Gisela, uma ex-amiga de Janice. A muito não se falavam desde quando soube que Gisela paquerava Durval as escondidas.
“Belo vestido vocês arranjaram. Compraram juntas?” – Perguntou a peçonhenta amiga.
O jantar era bobó de camarão servindo num prato de porcelana inglesa decorado pelo famoso Chefe de cozinha Lui Martin. Janice pegou o respectivo talher para frutos do mar experimentou a iguaria, fez uma cara de desgosto e num simples gesto jogou todo o bobó de camarão em cima de Gisela.
O que seria um casamento triunfal virou uma briga de boteco de esquina. Janice insana quebrou uma garrafa de vinho, tinha a intenção de enfiar aqueles cacos no rosto de Gisela e da Celina.
Durval usou de toda sua força para poder segurar a mulher. Necessitou da ajuda do noivo para separar as briguentas. Celina que era toda Zen, não entendeu o motivo de Janice estar brava com ela:
“Temos tanto em comum! O que foi que eu fiz?”
Com muito custo Durval conseguiu tirar Janice da festa e colocá-la dentro do carro. Na volta para casa Janice não parava de chorar Durval nada falava. Subiram para o apartamento, “vou comprar seu calmante”. Rapidamente tirou o terno e colocou um moletom. Saiu batendo a porta da sala.
Janice viu tudo isso chorando na sala. Levantou foi a seu closet, abriu a porta de espelho e se viu naquele vestido. O choro voltou em revolta, rasgou todo o vestido ficou nua no espelho. Viu seu corpo. Lembrou de como o vestido ficava bonito no corpo da Celina. Estava se sentindo muito mal a pior mulher do mundo, a mais feia, a mais horrorosa.
Não conseguia imaginar o porquê de Durval gostar dela? Como ele poderia viver com um estrupício como ela? Ela era uma farsa como mulher, um arremedo de pessoa. Nem escolher um vestido decente conseguia escolher. A vida social que construíram juntos foi atirada na privada, Tudo porque não soube escolher um vestido decente.
Olhou para a porta de vidro de sua sacada. Eram quinze andares. O porteiro acordou com um repentino baque. Havia um corpo estendido na calçada.
Durval virou na esquina de sua rua, voltava da farmácia. Deu de cara com carros de polícia e ambulância. Deu meia volta no carro, entrou em uma viela perto de seu prédio. Parou o carro e furtivamente pegou o celular. Discou rapidamente os números, não atendia. Discou de novo, atendeu:
“Celina? É o Durval. Nosso plano foi melhor do que esperávamos. Não vamos precisar mais dos calmantes. O vestido mais a baixa hormonal foram mais eficazes do que o calmante. Te espero daqui a quinze dias em Cancun. Beijos meu amor”.



terça-feira, 1 de setembro de 2015

Paura


...o breu desgraçado! Mal conseguia distinguir o asfalto do acostamento. Era uma noite de céu encoberto. Deveria estar com medo mas como dizem, o que não se vê não se sente.
Lembrei de meu avô dizendo “só bestas como você para acreditar em coisas que só os olhos vêem”. Senti sua presença ao meu lado, “devia dar ouvidos ao seu coração.”
De imediato meu coração disparou, um frio súbito subiu minha espinha. Algo de muito ruim estava para acontecer, não sabia o quê, algo de muito perigoso. Parei no meio da estrada e tentei ver o que poderia ser.
Nada.
Escutar?
Somente os grilos e vento batendo no mato.
Cheiro?
O perfume do ar da noite.
Mas meu coração saltava avisando que tinha problemas chegando, “maldito carro quebrado! Merda!”
Meu avô de novo, “é melhor se acalmar pra pelo menos não mijar nas calças, o resto deixa que seu coração resolva.”
Desatei a correr, pude perceber uma árvore bem copada na beira do acostamento.
Subi.
Achei uns galhos que me deixariam bem escondido e até confortável.
Algum tempo depois percebi um barulho de motor se aproximando. Era um carro de faróis apagados e uma lanterna vasculhava o acostamento.
Pararam perto da árvore, pude ouvi-los:
“Será que o desgraçado conseguiu fugir?”

“Vamo dá uns tiros no mato só pra ter certeza.”

“Não. O cara conseguiu fugir. O santo dele foi mais forte. Não tem jeito.”
Foram embora.
Fiquei tão apavorado que adormeci agarrado aos galhos.
Sonhei com meu avô, dizia que estava se esforçando para que nada de mal me acontecesse, mas que deveria lembrar das coisas que ele me ensinou.
“Que coisas?”. Perguntei.
“Aquelas que te permitiram sobreviver a este contratempo.”
Acordei com um cocô de passarinho escorrendo no meu rosto. Nem percebi o sol nascer, mas estava com uma estranha tonalidade. Dizem que quando se tem contato com os espíritos o dia seguinte fica de uma cor diferente.
Fui pra casa.

A Rita

Sabe quando parece que nunca iria acontecer com você?
Aí vem a sutileza, vem o acaso e muda tudo o que você planejou?
Quando se está mais desatento aparece o maldito detalhe e quebra sua perna! Você acaba caindo nas malhas do destino. Um destino que você não tinha planejado.
Vou lhe contar como vim parar aqui.
Um corriqueiro dia de trabalho. Um típico fim de tarde. Uma pitoresca estação de metrô em final de expediente.
Como podia um sujeito pacato com eu fazer um negócio desses?
Nunca pensaria em escalar prédios, brigar com valentões, ir parar na cadeia.
Nunca!
Eu me desconhecia.
Mas como me conhecer de novo? Só se aceitasse o meu destino.
Estou aqui por isso.
Aceitei meu carma.
Relacionamentos?
Não pensava neles há muito tempo e nem queria pensar, depois do desastre chamado Cíntia a minha vida mudou muito. Antes, tudo era simples.
Era um solteiro convicto. Aí Cíntia apareceu. Foram três anos intensos de convivência. Dormindo junto, comendo juntos e no fim cada um estava disposto a devorar o coração do outro.
Um verdadeiro desastre! Pensei em virar clérigo.
A vida celibatária me era interessante. O celibato era uma trégua na batalha que meu coração acabara de perder.
Sempre gostei do esoterismo das ciências ocultas. Quem sabe sem Cíntia nem outra mulher por perto eu poderia me dedicar a estas fascinantes ciências.
Foram alguns dias com os Hare Khrshnas. Outros tantos com os candomblecistas poucos minutos com os evangélicos. Ao final desta maratona descobri uma estafa. Nada preencheu o vazio deixado por Cíntia. Nada explicava as amarguras sofridas durante aquele visceral relacionamento.
Estaria melhor quando voltasse ao meu trabalho. Meu antigo escritório de arquitetura chamava. Voltei à vida original. Sem a Cíntia e muito menos mulher alguma me atazanando.
Desde então havia dois anos sem nenhuma fêmea. Um solteiro convicto. Dois anos na mais completa solidão sexual!
Dois anos sem as perturbações e inconveniências femininas. É claro as tentações me assolavam, pensava ser você o autor destas tentações.
No entanto me sentia muito forte quando dizia não a elas. Eu era celibatário sem a necessidade de me tornar clérigo, Santo Agostinho ficaria com inveja! Estava satisfeito comigo havia me tornado uma pessoa melhor por vencer todas as chagas que Cíntia me dera.
Sempre vinculei músicas ao meu estado de espirito. Na época de Cíntia a “Sagração da Primavera” de Stravinsky era o tema constante, com aqueles acordes caóticos vibrantes.
Quando ficava de saco cheio dela escutava músicas sertanejas. As piores possíveis as mais bregas as reais dores-de-cotovelo.
O ‘’Samba do Grande Amor” do Chico Buarque foi o epílogo.
A vida de Nelson Rodrigues dentre outros livros dele, os quais diziam muito sobre a alma feminina eram os meus livros de cabeceira. Mas agora tudo era passado.
Poderia olhar para qualquer mulher e desprezá-las imediatamente simplesmente porque eu não precisava delas.
Eu era um homem completo sem a necessidade de uma cara metade, dos carinhos ou das delicadezas femininas. Antes de você duvidar da minha masculinidade. Eu me sentia como o super-homem de Nietsche. Bernard Shaw sempre pregou: “o homem pelo que o homem é sem a necessidade de outra para ser feliz”.
Entretanto nunca se deve duvidar da Vida se isso acontecer ela vai te passar a perna como Cíntia fez, como todas as mulheres fazem. É impressionante a similaridade entre as mulheres e a Vida. Devem ser energias parecidas afinal é a mulher que dá a vida, assim pensavam os antigos.
Eles estavam muito certos.

Neste dia, neste corriqueiro dia observei no metrô várias mulheres. Às vezes uma ou outra olhava com olhares de curiosidade eu retribuía com olhares de desdém. Até ver um grupo de freiras, eram quatro. Pensei: estas mulheres jamais apelariam para as aparências. Mesmo porque elas eram bem feias para os meus severos padrões de beleza. São as mulheres mais inofensivas do mundo. Como arquiteto deveria saber, a beleza é conceitual o que importa é a harmonia das formas. Este foi o primeiro pensamento a vir na cabeça. Minha primeira falha. Foi onde baixei a guarda.
Procurei algo de interessante nelas, uma era baixinha e gordinha bem alegre. Falava expansivamente, tinha os olhos muito furtivos. Outras duas eram magras usavam óculos, aliás, todas usavam óculos grossos. Talvez óculos grossos seja parte do uniforme delas.
Essas duas insistiam em arcar os ombros numa clara demonstração de submissão a qualquer coisa. Quando sorriam tapavam a boca com as duas mãos como se a alegria fosse um pecado.
A quarta freira me chamou mais a atenção, ela era baixa mas não era gorda. Usava sandálias de couro tipo franciscano mostrava um pequenino pé muito feminino. A pele muito clara e seus cabelos apesar de estarem cobertos pelo véu uma mecha de fios castanhos claro apareciam.
Esta sutil diferença chamou minha atenção. Fiz uma análise mais crítica, notei seus olhos igualmente claros. Seus dentes perfeitos apareciam em um sorriso largo. Talvez não tivesse medo de pecar.
Seus ombros não eram arcados o que achei um fenômeno. Mostrava uma certa petulância para uma freira. Ao final da análise fiquei pasmado. Ela era linda! Sorriso lindo! Um desperdício de mulher.
Mas desperdício? Para quem? Eu com as minhas novas atitudes para com as mulheres, não me permitia tomar certas liberdades de celibatário-não-clérigo. Entretanto, numa freira eu poderia confiar, elas nunca tomariam atitudes típicas de mulheres. Afinal elas são casadas com Deus por isso usam aliança.
Naquele momento um sentimento de inveja me apossou. Imagine o absurdo! A inveja de Deus. Inveja por estar casado com uma mulher tão bonita e ter a certeza dela lhe dar seu total amor e devoção!
O metrô parou e as freiras saíram. Meus pensamentos me levaram a Lua. Perdi a estação onde desceria. Estava sozinho no vagão. Vi um livro preto caído no chão. Abri, era uma bíblia.
Haviam dois nomes escritos um era Eleonora de Ávila Serpes e o outro era Celina de Fátima Aparecida.
Devia ser o nome original e o nome de guerra que elas usam quando são confirmadas. Havia um nome de colégio, era o Sacre Coer. Levei a bíblia para casa.
Fiquei pensando naquela freirinha a noite inteira. Havia tempo que não tocava numa bíblia. Folheei e li algo a respeito da salvação de Maria Madalena.
Lembrei do filme ‘A última tentação de Cristo’ quando ela realmente tentou Cristo. No dia seguinte decidi devolver o livro. Afinal imagine uma freira sem bíblia. Era como se fosse um médico sem estetoscópio.
Entrei no colégio e uma freira mais graduada me atendeu. Contei que vi um grupo de freiras no metrô e uma delas deixou cair a bíblia.
“Vim entregar”.
Achei estar fazendo uma boa ação e quem sabe ver a Freirinha. A freira graduada me olhou com um certo desconfio. Pegou a bíblia
“Pode deixar. Irei entregar ao devido dono”.
Me indicou a saída e desconsolado sem nenhuma desculpa tive de sair. Olhei uma vez mais para o colégio.
“Assim seja!“
Me virei rapidamente e dei de encontro com a Freirinha, ela derrubou tudo que carregava. Pedi mil desculpas recolhi todas aquelas infinidades de livros e cadernos. Olhou para mim com um ar de freira, mas depois pecou. Sorrindo seus lindos dentes.
Contei sobre a bíblia perdida. Era da companheira de quarto. Estranhamente conversamos muito e o tempo passou ali na frente do colégio como se fossem cinco minutos.
Não foi num bar nem numa danceteria ou qualquer lugar típico de paquera, mesmo porque em teoria eu não estava paquerando uma freira.
Idéia absurda! Apesar da beleza escondida atrás de tantos véus, roupas e anáguas.
Ela se chamava Maria Rita somente Maria Rita. Nada daqueles nomes elaborados. Ela era simplesmente a Maria Rita. Não quis dizer seu nome original.
Fiquei pensando nela durante toda a semana ela não saia da minha cabeça. Fui tentar vê-la novamente.
Arranjei uma desculpa dizendo ser o arquiteto da prefeitura tinha de vistoriar todos os aposentos a procura de rachaduras, infiltrações ou mudança na arquitetura do prédio.
Infelizmente ela estava na clausura. Insisti em vistoriar aquele aposento, mas as freiras fizeram de tudo para eu não entrar lá. Ameacei intervir com bombeiros e polícia quando um estranho padre vestido de batina preta com uma cruz de malta vermelha no peito esquerdo me impediu de entrar na clausura. Olhei para a cara do sujeito e com dedo em riste o ameacei por impedir o cumprimento de ordens federais de segurança.
Ele quase quebrou meu dedo. Notei que o estranho padre não tinha cara de padre, seu rosto tinha feições duras. Rosto firme, marcado, de alguém que já tomou muita pancada e não tem medo de leis federais.
Maria Rita saiu da clausura com a confusão formada. Falando em italiano ela repreendeu o dito padre e me soltou. Ela pediu desculpas perguntou se eu ainda queria ver a clausura.
Respondi que não, pois já havia atingido meu objetivo de vê-la.
Falei isto somente para ela
Rita me acompanhou para fora do colégio onde ficamos conversando, perguntei se era pecado eu convidá-la para um jantar.
“Desde que não fosse a restaurantes caros.”
Seria em minha casa, ela disse “as seis horas da tarde.”
“Tudo bem, mas porque tão cedo?”
“Porque freiras dormem cedo” Obvia resposta.
Naquela noite elucubrei sobre tudo o que envolve uma religião. Eu nunca fui religioso apesar de ser um curioso das ciências ocultas. Nunca acreditei muito em deus e muito menos no diabo.
Mesmo assim certos preconceitos vinham a minha mente, talvez fossem frutos da nossa criação crista.
Preparei duas trutas com alcaparras na manteiga, para acompanhar arroz branco ao estilo japonês e legumes sautê. De sobremesa, uma salada de frutas com chantili. Às seis horas em ponto, Rita invadia meu casto lar. Vestia o tradicional uniforme de freira, dispensando apenas o véu mostrando seus cabelos curtos que a tornava muito mais charmosa. Estava sem nenhuma pintura muito diferente das mulheres que conheci. Era como se a visse nua em pelo. Gostei muito! Longe do convento e das freiras, ela era muito sensual. Fiquei muito intrigado por ver essas qualidades numa freira.
Jantamos.
A conversa foi se desenrolando livremente parecia haver uma correspondência de confiança. Ela me contou toda sua vida, o porquê de ser freira. Ela dizia fazer parte de uma ala progressista da igreja, mas o que mais me chamou a atenção foi uma teoria dela sobre as próprias mulheres. Ela dizia existir tipos padrões de mulheres. Por exemplo, todas as madalenas são iguais ao arquétipo da madalena. Todas as Amélias são iguais ao arquétipo da Amélia da música de Noel Rosa. Os arquétipos dos nomes ditam a personalidade da pessoa. No caso das Marias todas elas tem como arquétipo Mãe Maria.
“Você é igual a Rita da música do Chico Buarque?”
Respondeu-me com os olhos de esgueio.
“Claro que não! Eu sou freira!”
Acho que ela mentiu. O jantar estava muito bom ela era uma ótima companhia. Saiu de casa as oito da noite estava atrasada.
Eu estava apaixonado. Fui contar o acontecido para meu sócio e melhor amigo. O Genésio.
O Genê, como a gente costumava chamar era um sujeito calmo, tinha quatro filhos. Um pai exemplar apesar da mãe de seu filhos o ter trocado por um rapaz mais novo e rico. Genê na época ficou muito mal. Passou a beber e frequentar casas de reputação duvidosa, mas tudo se resolveu.
Ele era um sujeito muito centrado para uma mulher acabar com ele. Manteve a guarda das crianças. Não demorou muito até alguma mulher com um pouco mais de senso ver as extremas qualidades do Genésio. Virou outra pessoa depois de conhecer Margarida.
Esqueceu sua ex-mulher definitivamente. Se existe alguém com sorte neste mundo este alguém é o Genésio. Às vezes tinha um pouco de inveja dele por causa da Margarida.
Primeiro ele me achou definitivamente louco depois deu o número do telefone do seu ex-psiquiatra. Não frequentava mais desde que Margarida apareceu em sua vida.
“Desde quando um psiquiatra consegue substituir o amor? Nenhum psiquiatra conseguiu sequer defini-lo.”
Margarida queria conhecer Rita para ver se ela passava em seu crivo. Ficaram preocupados nem a Cintia tinha me deixado tão louco de paixão. Genê pediu para tomar cuidado.
“Essa Rita parece mais uma bruxa do que uma freira.”

Com o decorrer do tempo sempre achava uma maneira de encontrar a Rita. Eu me disfarçava de jardineiro para cuidar do jardim do colégio.
Ela estranhou quando me viu, era minha contribuição humanitária, respondi. A Madre não gostou quando remodelei totalmente o jardim dando um ar mais moderno.
Fui despedido.
A Madre já me conhecia então só poderia ser sorrateiramente como um ninja que adentra o covil dos assassinos.
Rita levou um susto quando me viu vestido de ninja, quase gritou. Novamente ela estranhava muito as minhas aparições repentinas ou como mendigo ou na espreita quando ela saia para trabalhar fora do convento. Nas primeiras vezes ela tentava fugir de mim a qualquer custo.
Senti-me igualzinho a você.
Mas nós somos humanos e como humanos precisamos aprender a lidar com nossos sentimentos, sejam eles considerados impróprios para certas pessoas, sejam eles absurdos para outras.
O que Rita sentia por mim era tão forte quanto toda a sua devoção pela Igreja. Sempre que me via, ficava visivelmente ruborizada. Nunca tive tanta certeza de um sentimento. Ela chegou a pedir para nunca mais a procurar.
“Impossível a Terra ficar sem a Lua para poder iluminá-la. Impossível o mar ficar sem as ondas, sem o verde dos seus olhos, sem o quente das suas mãos para senti-la. Não é possível viver sem a brisa dos ventos, sem o cheiro da grama, ficar sem você nem ao menos num piscar d’olhos.”
Essa foi a carta que lhe escrevi. Disse que se não quisesse nunca mais me ver eu entenderia. Mas gostaria que ela me dissesse isso olhando nos meus olhos. No fundo da minha alma.
Ela não conseguiu dizer isso.
Nosso primeiro beijo foi numa segunda-feira as quatro da tarde nas escadarias da igreja.
Joguei no lixo tudo o que pensava e acreditava. respeito de mim, das mulheres, de Bernard Shaw, daquelas teorizações sobre sentimentos e tudo.
Acho que nunca tinha amado alguém até então. Queimei os livros de Nelson Rodrigues, rasguei os livros de Flaubert.
Queria ela mais do que tudo, mesmo se a ira de Deus, como marido traído caísse sobre mim.
O importante era a Rita.
Um mês depois nosso amor venceu. Ela abdicau das funções sacerdotais. Veio morar comigo estávamos no céu.
Encontrei a mulher da minha vida. Tinha poucos pertences. Outras que vieram traziam todo o armário, gato, cachorro, papagaio.
A Rita trouxe uma imagem de São Francisco que eu havia dado. Poucas roupas para uma mulher. Uns discos de canto gregoriano e música indiana. Ela adorou meu cd de piano da ‘Cleur de lune’ do Debussy. Ouvia constantemente. Adorou a estátua de jaburú que eu fiz. Decorou o apartamento dando um ar mais feminino.
Sete meses durou minha plena felicidade.
Sete meses de um autêntico nirvana.
Sete meses de puro amor.
Talvez esses fossem os sete meses que Deus estivesse fora para amar as tantas outras esposas e se esqueceu da mais bela dentre elas.
Todos os dias, todas as horas nós estávamos inteiramente entregues um ao outro.
Foi quando Deus resolveu reivindicar seus direitos de marido traído.
Uma junta de freiras sempre tentava de todas as maneiras demovê-la da idéia de deixar o sacerdócio.
Um dia a madre superiora a encontrou numa esquina, conversaram por toda tarde. Neste dia ela tinha chegado em casa muito estranha, apreensiva, furtiva, fria. Estranhei muito. No dia seguinte ela me deixou. Meu amor!
Meu grande amor. Mulher da minha vida me deixou. Deixou-me por outro que nada mais era do que o próprio Deus!
Como na música do Chico, ela levou meu sorriso, o sorriso dela e um abraço. Levou a imagem de São Francisco, um álbum de fotos de nós dois, minha escultura do jaburú. Uma foto minha de quando eu era menininho. Levou um bolo de notas. Nem a minha viola caipira dado por famoso violeiro goiano, ela me deixou.
Maldito seja o Chico Buarque mil vezes por ter feito esta música ‘A Rita’! Agora toda vez que a ouço lembro da minha Freira.
Como amante renegado fui atrás dela. Invadi o convento onde ela estava. Não me deixaram vê-la de maneira nenhuma ameaçando chamarem a polícia.
Saí do prédio e gritei para ela aparecer. Minhas lágrimas queimavam em meu rosto.
Será loucura?
Dizem que a loucura é irmã do amor.
A polícia chegou fui preso. Horas depois solto. Voltei para casa, lá encontrei o estranho padre de batina preta com uma cruz de malta em seu peito.
A Rita tinha me avisado sobre ele. Fazia parte de uma congregação chamada ‘Cruz de Malta’. Eram eunucos educados nas mais mortais artes da guerra. Especializados em matar, eram os soldados da Igreja. Rita me contou que nos conventos mais importantes existe um soldado deste para guardar a Igreja.
Foi o momento de ver seus frios olhos e uma fina dor invadiu meu ventre. Logo depois eu vi limpar um punhal em minha camisa.
Eu estava morto.
Apesar do mais puro amor que senti por Maria Rita de nada me valeu.
Deus como marido traído me mandou para o inferno.
Foi assim que tudo aconteceu Lúcifer.
O que não se faz por amor? Você bem sabe. Se não, não estaria aqui, com seu rabo de espeto e essas ridículas patas de bode.
“(Gargalhadas) Não me compare a você seu idiota!
Não era você que não acreditava em Deus? Que duvidava da ira de Deus? Foi mexer com o camarada se danou!!! Agora você vai é penar!”
Pode rir! Lúcifer, mas eu a tive e queimar no inferno não se compara a dor que passei quando ela se foi.
Portanto podemos disputar quem vai ser o novo dono daqui!

E aqui começa a guerra no inferno.