quarta-feira, 26 de agosto de 2009

OS SAPATOS

Sejam scarpins, sapatilhas, tamancos, simples sandálias. Abertos ou fechados. Rasteirinhas, chinelos, plataformas, mesmo os tênis. Botas, cano alto, cano baixo. Mas, sempre. Sempre os de salto alto. Esses são imbatíveis!

Não adianta. Todos os meus relacionamentos amorosos se basearam inteiramente na combinação entre o sapato e a mulher. Não tinha jeito, eu olhava primeiro para a mulher e em seguida para o que ela calçava. Olhava sem nenhuma vergonha.

Eu forçava a não olhar para o sapato, mas não dava. Se ela fosse interessante eu tinha que ver. Combinava. Ótimo! Caso contrário, até dava uma colher de chá. Tipo: se na terceira saída ela não acertasse com o sapato eu a dispensava ali na hora.

Sapatos e mulheres são duas coisas indivisíveis. Já fiquei terrivelmente apaixonado por mulheres que conseguiam essa harmonização. Mas, acontecia de elas me dispensarem assim que percebiam a minha loucura. Algumas não, como foi o caso da Julia que me manipulou por um bom tempo.

O Sapato é o supra-sumo da feminilidade, é onde a mulher se coloca se posiciona. É um altar ambulante da feminilidade. Já a mulher...bem, a mulher é a mulher.

Ela já é perfeita em toda a sua essência. Quando ela mostra essa essência, é claro. O sapato serve justamente para isso. A mulher mesmo imperfeita esteticamente se transforma quando usa e abusa de sua feminilidade. Vira uma deusa. Os sapatos quando combinados tem esse poder de trazer a feminilidade perdida, ou simplesmente torná-la Poderosa.

Não sei por que não fui sapateiro? Talvez devido a uma psicóloga que me indicou alguma profissão que não tivesse a ver com sapatos. Fui ser arquiteto. Sócio de uma empresa de desenhos arquitetônicos. Mas essa mania, esse fetiche como a psicóloga gostava de chamar, nunca desaparece. Diminuiu na faculdade, mas nunca desapareceu.

Outro dia contratamos uma arquiteta recém formada. Em seu primeiro dia veio de vestidinho vermelho de alcinha e um coturno. Um coturno? Já tinha visto essa aberração de combinação na rua. Muito repulsivo. Quase falei pro Jorge, meu sócio, demití-la.

“Juba. Fica na tua! Vai tratar das suas neuras que eu trato da firma.”

Que cala-boca! Como sou idiota! Será que preciso voltar à minha analista? Ele tem razão, essa minha mania deve ser muito chata com as mulheres. Coitada da Pamela. Ela era uma ótima pessoa. Podia ter dado certo, mas aquele chinelo de dedo com plataforma era uma batida de carros!

Apesar dos coturnos a menina era bem bonitinha, cabelos lisos e pretos, rosto fino, de narizinho arrebitado e o mais interessante, uma legítima falsa-magra. Ela insistia em usar o coturno e assim foi durante uma semana. Por um lado foi bom, pois comecei a não ligar. Entretanto, na semana seguinte ela foi com uma sapatilhazinha de princesa, uma saia e blusinha que meu queixo caiu.

“Porra Juba! Se toca! Olha o assédio!”

“Desculpa Jorge. Não resisti. A menina esta um doce!”

“Cara! Você tem que se controlar mais. Os projetos estão atrasados.”

O Jorge tinha razão. Os projetos estavam atrasados e eu olhando para as pernas... Pés, cabeça, pescoço, cabelos, olhos, bunda e os sapatos da moça.

Acho que vou voltar a freqüentar minha psicanalista.

Pra quê? Até hoje ela não resolveu. Disse que era um complexo de Édipo mal resolvido. Mas e daí? Como é que se resolve? Acho que o mal dos psicólogos, psicanalistas e outros doidos é que eles não são tão objetivos em seus tratamentos como deveriam ser. Dane-se!

Evitei os sapatos, evitei a menina, evitei sair. Mesmo com um convite da Julia.

“Vamos sair Juba? Eu vou com aquela sandalinha que você tanto gosta.”

Tentador, mas... “Estou resfriado.”

“Tá juba. Então eu uso aquela bota de cano alto de saltos nas alturas só pra vocês. E com uma surpresa a mais depois!”

A Julia era sacana sabia exatamente onde me atingir, fiquei com ela um bom tempo. Me traiu. Foi difícil terminar. Ela me manipulava do jeito que queria. Só em combinar os sapatos. Eu virava um joão-bobo. Fui forte e terminamos. Tempos depois ela voltava a me ligar usando e abusando dessa tática.

“Você está de sacanagem comigo Julia! Isso é um puta golpe baixo!”

Sai. Fazer o quê? A menina do escritório não saia da minha cabeça. Quem sabe a Julia a tirava.

Tirou por algumas horas. Cinco horas e meia para ser exato, entre um jantar e saber do que se tratava a surpresinha. Mas no dia seguinte a menina estava lá. Bonitinha. Gostosinha. Super! Fingia que não a via, ia com óculos escuros, dizia que estava com conjuntivite.

Eis que um dia ela entra no escritório de sandálias de saltos altos toda produzida. Neste dia eu decidi convidá-la para um jantar. Não seria um assédio e simplesmente uma forma de reunião de empresa.

Ela recusou. Estava namorando. Minha cara caiu no chão. Nunca mais olhei para ela com segundas ou terceiras intenções. Daquele momento em diante a tratei como um homem ou como qualquer outro funcionário. Quase fui a minha psicanalista para ensinar como é um tratamento objetivo.

“Toma Juba! Bem feito pra você. Ainda bem que ela não aceitou.”

“Por quê? É você o namorado dela?”

“Infelizmente não. Mas é que ela te deu um jeito.”

Os meses se passaram nossa empresa foi de vento em popa. Eu estava bem. Não babava mais. Não suspirava mais. Ainda apreciava os sapatos femininos. Mulheres vinham, mulheres passavam e eu ainda gostava de observar a menina do coturno. Era bonita não tinha como evitar.

Um dia numa reunião ela apareceu com um lindo scarpin delineando suas pernas, realçando suas ancas e soerguendo seus peitos. Estranhei esta recaída. A Julia não usava mais seus artifícios porque não surtia efeito. E agora aquilo! Babava no meio do escritório. Fiz das tripas coração, tirei leite de pedra! Não caí na tentação de xavecá-la. Nossa! Mas que mulherão!

O dia no escritório passou sem maiores contratempos, o problema é que era uma sexta feira e um “happy hour” estava marcado. Tinha de ir. Fomos nós os diretores que marcaram.

Lá estava ela, uma estrela brilhante. Álcool? Longe de mim. E assim, segurando de todos os lados o “Happy hour” passou. Estava pagando a conta quando ela senta ao meu lado cruza as pernas mostrando seu lindo scarpin combinando com pernas delineadas, saia curta e um busto empertigado.

Suspirei profundamente. O papo foi rolando solto. Evitava olhar para as pernas dela e seu scarpin, quando por impulso, saiu não sei de onde. Perguntei:

“Onde foi que você comprou este scarpin?”

Ela estranhou a pergunta.

“Por quê?”

“Eu achei bonito.”

“Obrigada.”

As mulheres sempre agradecem depois deste elogio. Embora eu esteja elogiando os sapatos e não ela. Isto prova que são duas entidades indivisíveis, os sapatos e a mulher.

“Vai comprar para alguém?”

“Não. Eu só queria saber.”

Ficamos sem assunto momentaneamente, nós dois olhando para os lados.

“Bom, já esta tarde. Preciso ir estou cansado.”

“Você esta de carro? Me dá uma carona?”

“E o namorado? Eu pensei que ia se encontrar com ele.”

“Terminamos a mais de um mês.”

E sentamos de novo na mesa para conversar mais. O papo continuou. Pessoa inteligente. Seus olhos brilhavam! Ofereci a carona. Um beijo no meio de um sinal vermelho me fez desviar para meu apartamento.

Descobri naquela noite que ela gostava de fazer com o seu scarpin ou com a sua bota de cano alto ou com sua sandália plataforma, gostava de todas as maneiras de todos os jeitos de todos os sapatos. Descobri que seu pé era lindo. Delicado. Feminino.

Casei com ela.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

O Gavião e os dois meninos

Fez a lição?
Mais ou menos.
Como assim?
É que eu não entendi direito o que a professora explicou. Você fez?
Não.
Xí! Ela vai dar bronca.
Bronca a mais, bronca a menos não vai fazer diferença.
Escola chata!
Muito.
Os meninos pararam como que encanto observando um pequeno gavião sair do topo de uma palmeira, parar no ar e cair como uma pedra no pasto. Saiu com uma cobrinha pendurada nas garras. Pousou num galho alto de uma araucária. Junto a ele apareceu outro gavião e dividiram a cobra.
Já saiu a lista da seleção?
Ainda não, mas o Pelé vai jogar.
Tomara.
Os dias passaram e todas as vezes que os meninos iam para a escola paravam naquele lugar para observarem os gaviões. As aves geralmente carregavam alguma presa, cobra, lagartixa, mas sempre os viam com ratos pendurados.
E o Chulé? Como é que vai?
Ele é muito engraçadinho, corre atrás da bola de meia e já estragou meu peão.
Minha mãe não deixa ter bicho em casa. Pedi um cachorrinho que nem o Chulé, ela nem quis saber. Arranjei um gatinho e ela disse que tinha alergia e que espirrava. Imagine gato dar espirro?
Lá em casa foi a mesma coisa, mas quando minha mãe viu o Chulé ela gostou. Meu pai deu uma força porque ele gosta de bicho
Os gaviões estavam construindo um ninho num galho alto da araucária. As paradas ficaram mais extensas, observavam a construção do ninho. Um dia perderam a aula e não os deixaram entrar na escola. Os dois receberam advertência por isso. Um deles recebeu uma surra em casa e o outro ficou de castigo por um mês.
Doeu?
Esta doendo até hoje, mas eu já estou acostumado. Meu pai não aceita eu ir mal na escola de jeito nenhum, quanto mais faltar a aula.
É mas você não ficou de castigo. Não vou assistir televisão, nem cinema por um mês, ainda vou ter de apresentar a lição de casa para meus pais. Bem agora que a série do Kung fu ia começar.
É. Acho que para você a coisa foi pior. O ninho já esta pronto.
Daqui uns dias vai ter ovo.
Os dias passaram e as observações se estenderam aos sábados e domingos. Nos domingos combinavam de se encontrar depois da missa.
Pois é. Como você disse. O Pelé vai.
É uma seleção daquelas né!
Já pensou se a gente for tricampeão?
Lá em casa meu pai já comprou um engradado de guaraná pra comemorar.
Os ovos chocaram, eram dois filhotes de gaviões. Os meninos paravam para ver as pequenas asas baterem no alto daquele ninho.
Eu não tenho bicho, você tem dois.
Mas quando quiser brincar com o Chulé e a Xispa é só ir lá em casa.
Mas não é mesma coisa. Minha mãe podia me deixar ter um bicho.
(pausa)
E se a gente pegasse um dos gaviõezinhos?
Cê ta louco? Bicho desse não se pega!
Cê fala isso porque já tem dois.
Anoiteceu. O final de semana chegou e o menino sem bicho não apareceu como de costume. No domingo, na missa eles se encontraram.
Onde você foi?
Eu fui ver como é que se faz para pegar o gaviãozinho. Cê vai comigo?
Eu não acho certo, mas eu vou.
Arranjaram uma corda para subir no pinheiro. Passavam a corda no galho de cima e assim iam subindo. Os gaviões não gostaram e piavam ameaçadoramente. Voavam perto da cabeça dos meninos tentando espantar. Os meninos estavam certos, era a aventura de suas vidas. Nada os impediria. Pegou o filhote, o assalto estava quase completo, agora faltava descer o pinheiro. Os pais do filhote não gostaram nada deste furto, investiram tudo em cima dos meninos, um deles conseguiu bicar a testa de um deles, sangrava. Outra investida e o menino com o filhote na sacola recebeu um arranhão na cabeça. Conseguiram descer. Estavam atrás deles, por mais de um quarteirão os pais ainda os perseguia.
Conseguimos!
Conseguimos. Nossa! Sua testa tá sangrando!
Sua cabeça também!
E agora? Que é que eu vou falar pra minha mãe?
E eu? O Filhote vai pra minha casa.
Mas sua mãe não vai deixar você ficar com o filhotinho.
E o Chulé vai matar ele.
Eu não vou deixar o Chulé ver ele.
Não. Você já tem dois bichos e eu não tenho nenhum e a idéia foi minha.
Tá bom.
Precisamos arranjar uma caixinha pra por ele.
Arranjaram uma pequena caixa de papelão, colocaram palha e o menino levou o filhote para seu quarto. O quarto virou o centro do mundo. Não saia mais. Sua mãe começou a estranhar. Pois seu amigo nunca entrava em casa, e agora os dois não saiam mais do quarto. Um dia a mãe descobriu. Ficou assustada, não gostava de bichos. Principalmente de bichos que ela não conhecia. Não quis o filhote em casa. O pai perguntou como eles conseguiram.
Ah pai! Eu não tenho bicho nenhum, eu só queria ter um bichinho para eu poder cuidar. Meu amigo tem o Chulé e a Xispa e eu não tenho nenhum.
A aventura foi muito perigosa. Sua mãe ficou de cabelo em pé quis colocá-lo de castigo. O pai foi razoável. Aquela aventura merecia ser desfrutada. Conseguiram. Conversou com a mãe e deixaram-no ficar com o passarinho desde que fosse à escola, tirasse boas notas e cuidasse bem do bicho como se fosse o pai.
Você viu? Meu pai me deixou ficar com o gavião!
E como vai ser o nome dele?
Vai ser Teo.
Teo? Por quê?
Porque não?
Esse nome não dá, tem que pensar mais.
O filhote cresceu, virou um belo gaviãozinho. Voava e retornava para seu ninho no quarto do menino. As vezes voava longe mas sempre voltava. A mãe se acostumou. O pai gostava. Por algum tempo o Gaviãozinho ficou famoso e sempre alguns meninos iam visitá-lo. Ele escoltava os meninos todas as vezes que iam para escola e lá ficava esperando até o final da aula. Escoltava os meninos na volta para casa.
O ano passou e tiveram de mudar de escola. Para ir às aulas seus pais contrataram uma perua. Mesmo assim o gaviãozinho os acompanhava. Durante algum tempo foi desse jeito. Um dia o Teo não voltou. O Menino não parava de olhar para o céu.
Filho! Pare de olhar para o alto! Vai cegar você!
Mas, cadê o Teo mãe?
Sei lá. Vai ver ele encontrou um gavião mulher e ficou apaixonado.
Não mãe!
A vida é assim. Um dia você também vai encontrar uma menininha de quem você gosta e vai embora.
O menino não se conformava, criou o gavião como se fosse seu filho, sabia tudo o que ele precisava só de olhar para ele. Achava que isso seria um desaforo. Mas, receberia o gavião de qualquer jeito. Passava dia e ele não chegava.
Cara! Eu encontrei o Teo!
Onde?
No guapuruvú perto da figueira da rua de baixo.
Foram, era o Teo mesmo. Estava com outro gavião era uma fêmea. Comiam uma pequena cobra. O menino assobiou forte e alto para que o pássaro ouvisse. Ouviu. Levantou a cabeça para saber de onde vinha. Num vôo raso passou raspando na cabeça dos meninos, como sempre fazia. Deu uma volta e pousou em seu ombro. Foi um adeus. Alçou vôo novamente. Aninhou-se num dos galhos mais altos do guapuruvú.
É. Dessa vez não vai dar para levar um dos filhos dele. Né?
Não. Acho que vou criar uma cobra ou um lagarto.
Até parece que sua mãe vai deixar.